é como me tentam fazer sentir e viver desde 1 de Janeiro de 2008. Quando acendo um cigarro. Quando limpo o cachimbo. Os fundamentalistas do vício privado e das públicas virtudes. Os poluidores que não pagam e acham que pago o cancro deles mas não paguei o meu. Os do costume.
Mix de animais e chuva: audio podcast para fumadores e não-fumadores não fundamentalistas…
David Fanshawe – Rain Song of Latigo Otengo (Uganda)
Pink Floyd – Several Species of Small Furry Animals Gathered Together in a Cave and Grooving with a Pict
Brian Eno & Robert Wyatt – Flies (Plague Songs)
David Fanshawe – Zande Song of Flight and Frogs (Sudan)
Francisco Vagido à última linha estava despedido.
Maria da Conceição disseram-lhe por escrito perdeu a pensão.
António Mateus leu e releu mas não percebeu.
Isabel Nunes andava tão farta e nem uma carta…
Otília Martins e demais pessoal no olho da rua por edital.
Marco Beleza recebe envelopes por debaixo da mesa.
Tété Ribeiro abriu uma carta suspeita – do patrão? – caiu no chão e teve a sua menstruação
(para o padre Sevícias foram boas notícias).
Zé Maria carteiro amanhã apeado a tempo inteiro.
Belmiro Ingente estava mais remetente.
Virgínia de cama confirma pelo correio como ainda se chama.
Nuno Morais morreu a lamber selos postais.
Manuel Amaral – já não é mau – enquanto pode flexigura-se ao pau.
Música:
Steve Beresford (Inglaterra) – Outside in (separador)
Alberto Ribeiro (Portugal) – Marco do correio (enxerto)
Ketty Lester (Usa)– Love letters
I Ribelli (Itália) – Pugni chiusi
General Strike (Steve Beresford/David Toop) – Guided missiles
Kalahari Surfers (África do Sul) – Song for Magnus (These boots are made for walking)
Textos, voz, foto (Picadilly, Londres): Pedro Lemos
O senhor desculpe, viu por aí a minha dílar? É que isto das leis de mercado é como se sabe, uma dor de cabeça
Eu sei que ela já não aparece às segundas feiras, cá em casa.
Tenho de encontrar a tipa sei lá aonde, entre tantas casas iguaizinhas…
O que um homem faz para apascentar os vícios…
Little Boxes – Las Casitas del Barrio Alto – Petites Boîtes:
Nara Leão
Victor Jara
Greame Allwright
Elvis Costello
Regina Spektor
Malvina Reynolds
Kate & Anna McGarrigle
Charles Bernett
Angélique Kidjo
Jody Bateman
(Obrigado Raquel pela deixa dos versos do Jody Bateman)
. Little boxes on the hillside,
Little boxes made of ticky-tacky,
Little boxes, little boxes,
Little boxes, all the same.
There’s a green one and a pink one
And a blue one and a yellow one
And they’re all made out of ticky-tacky
And they all look just the same.
. And the people in the houses
All go to the university,
And they all get put in boxes,
Little boxes, all the same.
And there’s doctors and there’s lawyers
And business executives,
And they’re all made out of ticky-tacky
And they all look just the same.
. And they all play on the golf-course,
And drink their Martini dry,
And they all have pretty children,
And the children go to school.
And the children go to summer camp
And then to the university,
And they all get put in boxes
And they all come out the same.
. And the boys go into business,
And marry, and raise a family,
And they all get put in boxes,
Little boxes, all the same.
There’s a green one and a pink one
And a blue one and a yellow one
And they’re all made out of ticky-tacky
And they all look just the same.
e de Jody Bateman
Politicians, politicians
Politicans making promises
Politicians, politicians
Politicians all the same
There’s republicans and there’s democrats
And there’s liberals and conservatives
And they’re all made out of ticky-tacky
And they all sound just the same.
O que é que faz o aleatório de um leitor de mp3 abrir “esta cidade” quando o comboio atravessa o Mondego e pára em Coimbra-B?
Porque é que este poema, de João Gentil que é de Lisboa, foi associado duas vezes no último ano a Coimbra?
O que é que eu tenho a ver com isso, que até ando distraído e logo até de bem com a minha cidade?
Era uma vez uma história muito mal contada. Primeiro aparecia o fim, depois o princípio e o meio estava cheio de erros: não explicava se o mau era mau de nascença ou se foi uma paralisia infantil; dava o dito por não dito e redizia o desdito; passava por cima da meta e chegava à narrativa primeiro; atropelava as personagens e fugia para um quartel de bombeiros. E não tinha cheiro, como o cão da piada alemã que matava quem a ouvisse. Por isso essa história foi contada do avesso para ver se conseguia fazer-se ouvir como deve ser.
“Mas uma história não tem querer!” disse a menina ao ouvi-la, “tem o querer de quem a conta e o querer de quem a ouve, mas sozinha não se aguenta.” “E uma história é contada para ser ouvida ou porque não há outra maneira, meu pudinzinho de banana? Ah, ah, ah, espera aí que eu vou-te comer”. Disse a história. E ficou o caldo entornado! Será que tínhamos ouvido mal? Não, não, que todos ouvíramos muito bem, que se tinha tratado claramente de uma tentativa de acto sexual com menor, que pudinzinho de banana é sexo explícito, que até nós nos lambemos, que é preciso por ordem na feira e moral na estrebaria e por isso vai tudo dentro!
Assim, sem julgamento, defesa, recurso e até pernas para andar, a história parou. Parou para reflectir. “Ora esta é muito boa… Sabem o que vos digo? Viver para aprender. Eu devia era ter abreviado e deixar-me de ameaças… Vou-te comer para aqui, ah, ah, ah, para acolá…! Tantos anos nisto… Os anais é que têm razão… Que vulgaridade, vou-te comer… … Espera. Mas eu disse “Vou-te comer”!!! E não “vou comer-te”! Vou-te comer, exclamação! Vou comer-te, reticências… Vou comer-te… as papas na cabeça, vou comer-te… em cima de um prato de agrafos, vou comer-te … esse rabo. Agora, vou-te comer… toda! E ponto final…
E com esta acareação denotativa de qualidade duvidosa a história endrominou os juízes, e os juízes rosnaram que podia não ser pedófila mas era antropófaga, e a história disse que não era sequer carnívora, e que as histórias, como entidades abstractas, alimentam-se de imaginações e figuras de estilo, e que comer criancinhas era coisa de comunistas, e os juízes, para a tramar, perguntaram-lhe a filiação partidária e a história disse que era da direita liberal mas moderada ao centro, e inimputável por definição, quer dizer, como história, onde já se viu uma história ser condenada pela lei dos homens, e os juízes, “então e mais nada?”, e a história, “não.”, e os juízes, “mesmo mais nada, nada, nada?”, e a história, “não, já disse!”, e vai os juízes, “então és uma história sem moral e com esta te lixamos”.
Música:
– John Cage (EUA) – Sonatas XIV e XV Gemini para piano preparado;
– Gabin Dabiré (Burkina Faso) – Kalé;
– Boris Kovac (Sérvia) – Sacred Millstone;
– Ena Pá 2000 (Portugal) – Canção de Embalar;
– Giovanni Girolamo Kapsberger/Rolf Lislevand (Itália/Noruega) – Colasione;
– Accordion Tribe (Eslovénia, Finlândia, Suécia, Áustria) – Encore Deux W;
Onde estás dentro da arca frigorífica à espera de ser jantado? Quente, quente, cucu, hoje és mesmo tu! Ah, a tua cabeça! Não bebeste o vodka, ficaste com esse ar aflito, eu nem acredito! Os teus olhos, os teus olhos, o que fizeste para merecer isto??? Nada? Pois … Agora queixa-te.
Ao contrário do acontecido nas últimas aparições, em que fizemos exactamente o mesmo, apetece-nos hoje comemorar. Hoje com mais propriedade do que ontem, em que voltaram a assinalar-se momentos importantes para o curso da humanidade, porque hoje não nos ocorre nada para comemorar. Pela primeira vez no ano, não há datas oficiais, efemérides, causas, cousas vetustas e garridas que nos possam valer. O dia é de absoluta não comemoração. O que merece uma comemoração.
A Marcha Global da Marijuana é uma iniciativa internacional, pacífica, que tem lugar em várias cidades do planeta em simultâneo, sempre no primeiro sábado do mês de Maio.
O objectivo desta marcha é chamar a atenção dos governos, decisores políticos e instituições relacionadas com as drogas e a toxicodependência, e da sociedade civil em geral, para a problemática e o falhanço da proibição no reduzir do consumo, do tráfico de drogas e do crime associado, alertando para a necessidade urgente de uma legalização/normalização da Canábis, planeada e baseada na realidade e em factos científicos.
A cannabis sativa — popularmente conhecida por marijuana ou, na sua variedade concentrada, por haxixe — é a “droga leve” mais massificada mundialmente, estimando-se que 4% da população mundial a consuma, num total de 160 milhões de pessoas. Na Europa este número ronda os 24 milhões.
No entanto, a grande maioria destas pessoas consome cannabis numa situação completamente ilegal, cometendo um crime que pode incorrer em pena de prisão, tanto no hemisfério Sul, onde o consumo está enraizado na cultura de alguns povos, como no hemisfério Norte, onde a globalização das culturas difundiu o seu uso recreativo e medicinal, sobretudo para aliviar dores e indisposição causadas por doenças crónicas e terminais como o HIV ou o cancro.
A proibição põe em risco a saúde pública, fomentando o mercado negro e a adulteração dos produtos. Os maiores riscos para o consumidor e para a sociedade não existiriam se não existisse a proibição. O consumo não gera violência e criminalidade nem ameaça a saúde pública, a proibição sim.
Não sendo inócua, a Canábis é certamente uma das drogas conhecidas mais seguras. Os riscos do seu consumo são mínimos, principalmente quando comparada com outras substâncias largamente consumidas e aceites pela lei e pela sociedade
Ao associar-se apenas negativamente o cânhamo/cannabis a um narcótico, despreza-se o seu aproveitamento industrial (que em Portugal tem raízes seculares enquanto matéria prima têxtil), florestal e energético.
5 de Maio de 2007:
Marcha Global pela Marijuana:
No Porto, Em Lisboa
E em mais 199 cidades do mundo, cada vez mais perto de si.
(texto colado e adaptado dos manifestos do Porto e de Lisboa)
(entre os quais, embora não forçosamente, o da morte)
György Ligeti (Hungria) Le Grand Macabre, abertura do segundo acto.
Já vai, já vai… não sou surdo!… mas que desvario é este? Está com pressa compre um cão… Pronto, já chega… O quê, tu???…
Camper Van Beethoven (USA) – O Death
… Entra! Apareces assim… Por pouco apanhavas-me a dormir! Continuas… esquelética… E toda encharcada! Que tal um banho quente? Não? Ao menos enxuga-te… E então, que tens feito? Para além do óbvio, claro! Ou devia perguntar, quantos tens feito? Nunca os suficientes, calculo!… Devias tratar-te, é o que te digo, porque não metes uma banda gástrica? Eu sei que não precisas, mas não podes pensar só em ti!… Nem todos têm o teu andamento… Mas isso já não importa. Agora, neste curtíssimo espaço, serás só a minha! Só a minha… A minha própria…
Kevin Blechdom (USA) – Shut the Fuck Up and Fuck Me
Joe Jones (USA) – Xylophone edit
De pende
Um homem e uma mulher, cada um em seu escadote, fornicam com uma corda ao pescoço. O primeiro a vir-se morre enforcado.
Arrigo Barnabé (Brasil) – À Procura de Um Orgasmo Total
Hazdam(Portugal) – Thinking in the Rain
Kazuko Hohki (Japão) – Singing in the Rain
Latigo Oteng (Uganda) – Rain Song
Ahmed Hussain (Índia) – Kajri Dhun
Final fluido
Um homem tomou o pulso, abriu as veias e, esvaindo-se, veio-se. Exsudando, lacrimijou-se pelas pernas, exânime, e espremeu-se como a uma borbulha purulenta.
Tuxedomoon (USA) – You
Chuva, trovoada (Apátridas) – Chuva, trovoada
Texto, Voz: Pedro Lemos Foto: Boca de Incêndio, Croácia, 2003
O Dia Internacional da Mulher foi estabelecido a partir da data de uma greve de operárias nova iorquinas, em 8 de Março de 1857. Ou talvez não. Rezam algumas crónicas que patrões e polícias trancaram as mulheres dentro da fábrica, lançaram-lhe fogo, e 129 morreram carbonizadas.
Embora factos como este tenham sucedido mais de uma vez num século XIX liberal, quando os patrões faziam mesmo o que queriam, existe um misto de lenda e história na escolha da data.
Prefiro outra lenda, a do Pão e das Rosas, por vezes misturada com as do 8 de Março, que tem origem num poema com o mesmo nome da autoria de James Oppenheim, publicado em Dezembro de 1911, e oferecido às “mulheres do Oeste”. Está geralmente associado a uma greve do sector têxtil em Lawrence, Massachusetts, em Janeiro-Março de 1912, e que ficou conhecida pela Greve das Rosas e do Pão. A greve de Lawrence, que uniu dezenas de comunidades imigrantes foi, em grande parte, conduzida por mulheres. Muitos afirmam que, durante a greve, algumas das mulheres transportavam um cartaz que dizia Queremos pão mas também queremos rosas! Não existem provas fiáveis que o confirmem, e esta afirmação foi rejeitada por alguns veteranos da greve de Lawrence, provavelmente homens, está-se mesmo a ver.
E gosto particularmente deste provável mito por via do poema, fabulosamente cantado por Judy Collins, num album de 1976 com o mesmo nome. Existem outras versões, claramente inferiores.
Misturei 20 minutos com algumas das vozes femininas que mais gosto, porque além de pão e de rosas, hoje é uma bom dia para lhes dar, a elas, música e versos.
É mesmo o único dia do ano em que podemos oferecer seja o que for a todas as mulheres e nenhuma fica ciumenta.
Pão e Rosas
Enquanto marchamos, marchamos, na beleza do dia,
Um milhão de cozinhas negras, um milhar de moinhos cinzentos,
São tocados por toda a luz revelada por um sol repentino
Porque as pessoas nos ouvem cantar: Pão e Rosas! Pão e Rosas!
Enquanto marchamos, marchamos, lutamos também pelos homens, Porque eles são as mulheres e são as crianças e são os nossos filhos outra vez As nossas vidas não devem ser suadas desde o nascimento até ao fim Os corações morrem de fome como os corpos; dai-nos pão, mas dai-nos rosas
Enquanto marchamos, marchamos, inúmeras mulheres morrem Gritam através das nossas canções, o seu antigo chamamento pelo pão É a pequena arte e amor e beleza que os seus espíritos macerados conhecem Sim, é pelo pão que lutamos, mas lutamos igualmente pelas rosas
Enquanto marchamos, marchamos, trazemos os grandes dias, O erguer das mulheres significa o erguer da raça. Não mais o moinho e o tensor, os dez que labutam por um que repousa Mas uma partilha das glórias da vida: pão e rosas, pão e rosas.
As nossas vidas não devem ser suadas desde o nascimento até ao fim Os corações morrem de fome como os corpos; dai-nos pão, mas dai-nos rosas
James Oppenheim, versão da Elisa,que deve estar a fazer hoje 500 dias…
Alexandre O’Neill que já tinha deixado poemas, dos pequenos grandes maiores do séc. XX,
inspira agora uma biografia, onde em livro Maria Antónia Oliveira faz um romance retrato, do poeta, vidas e desvidas, e da Lisboa aquando a viveu.
Ficam aqui alguns dos poemas cantados: Sérgio, Adriana, José Mário, Amália.
Sérgio Godinho – O’Neill (alguns poemas com endereço)
O pequeno feto chora, o pequeno feto ri, o pequeno feto joga à bola, o pequeno feto vota sim!… Não?
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Lurdes espreguiçou-se e inspirou o ar fresco da manhã. Lambida pelo sol, passou a mão pela nuca e de olhos fechados pôs-se a ouvir as conversas dos pássaros, os sinos a badalar com langor. O dia convidava ao aborto e Manuela, sacudindo o torpor, procurou uma clínica. “Então, Martinha, como vai ser hoje?”, perguntou a enfermeira, “Mal passado, mas não como da outra vez, que andei a encharcar os lençóis uma semana”. Era um espaço pequeno mas agradável, dotado de água canalizada e esfregona, onde as agulhas eram fervidas antes de qualquer intervenção. “Prontinha! Não trouxe ninguém? Sente-se aí um bocadinho a ver televisão”. Júlia recordou-se das tardes que passava com a avó, a ver a Heidi e os anúncios, do rubor que sentia quando a gata se enroscava entre as suas coxas e de quando acordavam as três em simultâneo, limpando a remela a pensar no jantar. Mas hoje, embalada pelas notícias, apetece-lhe mais vomitar.
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E a próxima pergunta é:
“Concorda com a eutanásia a padres homossexuais com os dentes podres da droga e ligações evidentes ao islamismo?”
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E o esperma? O que havemos de dizer do esperma?…
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Música:
– M. Mussorgsky/Filipe Pinto-Ribeiro, piano (RU/PT) – Bailado dos passarinhos dentro das suas cascas;
Américo Rodrigues (PT) – Não (exc.);
Alvaro Peña Rojas (CHI) – Drinkin’ my own sperm;
Coleen (FR) – Under the roof (exc.)
The Band of Holy Joy (UK) – Don´t stick knives in babbies’ heads;
Embrião abandonado ( ? );
Horrific Child (FR) – L’Etrange Mr. Whinster (exc.);
Era uma traça muito traça, daquelas traças de pura raça, da que traça sempre a direito, sem olhar para trás.
Era uma traça dessas, das que sabe bem como se desenlaça qualquer malha, por mais fiada ou apertada que seja.
2
E foi uma dessas traças, das de pura raça, que traçou o casaco preto desta estória, que era uma estória bem vestida, com todos os pontos e linhas bem certinhos até ao dia em que a traça apareceu. Mas é melhor começar pelo princípio e contar como tudo aconteceu.
3
O Verão começara já há alguns dias e o calor sentia-se claramente em tudo. As estórias de Inverno deixaram de servir e era tempo de arrumá-las bem arrumadinhas no armário para que não se estragassem com o sol.
4
E assim foi o que aconteceu com esta estória, uma estória que passou de boca em boca naqueles meses em que chovia ou estava demasiado frio para sair de casa.
5
Os pais e os avós contaram-na, os filhos e os netos ouviram-na, e todos a sabiam de cor, pois as palavras, as vírgulas, os uis e os ais e outros que tais estavam sempre no sítio, prontinhos a aparecer no momento certo.
6
Esta estória era a estória do casaco preto de lã de ovelha, muito fofa e muito quentinha. O casaco preto, acreditem ou não, antes de ser casaco também foi fio de lã enrolado num novelo. E esse fio de lã preto, também em tempos foi branco e todo encaracolado.
7
Pois é verdade. Antes de tudo isto foi pele de ovelha, ou seja, casaco de ovelha.
As voltas que isto dá! Quem diria que de casaco branco de ovelha todo encaracoladinho se passa a fio de lã preto enrolado num novelo e de novelo a casaco preto de lã, sabe-se lá de quem…
8
E de lá para cá, de cá para lá, o casaco preto de lã andou, passou de mão em mão: de quem o fez foi para quem o quis, quem o quis o vestiu e despiu, e quando não quis o guardou.
9
Foi assim que, no dia em que o calor apertou, o casaco no armário ficou. Bem pendurado para não ficar deformado, bem guardado, para não ficar estragado.
Mas por vezes o destino é trapaceiro e daquela vez a trapaça foi mesmo uma traça cheia de traça que traçou a desgraça.
10
Aproximou-se devagar, como quem não quer a peça, e logo se tomou de amores pelo casaco preto de lã. E, traça que traça, a traça de boa raça logo se abraça à boa lã, picando aqui e acolá.
Satisfeita, a traça voou e o casaco lá ficou, agora com pouca lã, mais parecendo um farrapo velho.
11
O Inverno seguinte chegou e era tempo de abrir o armário, tirar o casaco de Inverno e arrumar o de Verão. Quer dizer, era tempo de contar as estórias de Inverno e guardar as de Verão. Mas como? O casaco estava tão esburacado que até metia dó! Para que servia? Só se fosse para fazer uma rede para apanhar peixes… E foi isso mesmo que aconteceu.
12
Aproveitou-se o que se podia, teceu-se uma rede e agora o casaco preto de lã é uma estória de Verão. E sabem porquê?
Porque anda no mar, feito rede, nas mãos de um menino a apanhar peixes a brincar.
Músicas:
Syd Barret – Baby Lemonad
Syd Barret / Pink Floyd – The Gnome
Uakti – Earth
Adriana Calcanhotto – Saiba
Michel Giacometti (recolha) – Ró Ró (Trás-os-Montes)
Galandum Galundaina – Chin Glin Din
José Afonso – Barracas Ocupação
Texto: Isabel Rosas
Desenho: Emília Gouveia
Realização: João Cardoso
O rumble fish, um betta splendens, claro, pinou, foi-se, finou-se, baicou, faleceu, morreu, não esticou o pernil mas a barbatana, bateu a caçoleta, esta noite.
Sem combates, acordou como uma mancha azul no fundo do aquário.
Esta é a banda sonora para o velório e enterro, num vaso plantado, que na natureza nada se perde. Eu perdi o meu peixe de estimação, e fiquei sem palavras, sem voz, e por acaso estou farto de não ter micro.
Deixa, o peixe, uma jovem viúva, não sei por quanto tempo.
… A pigmentação da ervilha? A ablação da cedilha? O regresso da patilha? Não atinar com a presilha? Os eflúvios da virilha? Entalá-lo na braguilha? A vulgarização da guerilha? O orangotangas da ilha? Conversa de pacotilha? Irem-te ao pacote à filha? Ter que separar a pilha? Seguir a boa cartilha? Alombar com a bandarilha? O calibre da tua anilha? Alinhar com a pandilha? Regurgitar a pastilha? O teu quinhão na partilha? O tresmalho da matilha? Ter que dar à sapatilha? Cair numa armadilha? A oclusão da escotilha?… O travo da salsaparrilha?…O que é que te calha?…… A cintilação da pantalha? A apologia da palha? A apoteose da tralha? A exultação da maralha? A inocência da gralha? A exaltação da canalha? A política da migalha? Uma camisolinha de malha? Meter lenha na fornalha? Fazer dos ossos metralha? Dar uso devido à limalha? Esfregá-la no pito à pirralha? Submeter-lhe a carne à navalha? Aproveitar para tingir a toalha? Invocar os da tua igualha? Aconchegar-lhes a mortalha? A renovação da escumalha? Que se construa a muralha?… Manter sistémica a falha?
Música:
VVV (Vega/Vainio/Väisänen) – 11:52 PM
Max Eastley – Two 150 Kilo Blocks of Melting Ice With Layers of Stones Embedde Falling Onto A Metal Plate for Climate Change Project Cape Farewell
Electrelane – Gabriel
Mão Morta – Atentado no Metropolitano
Negativland – Car Bomb
R. Stevie Moore – Holocaust Parade
Eugene Chadbourne – The Girl From Al-Qaeda
Martin Archer – It Don’t Bother Me
Tom Zé – Curiosidade/ “W.C. Bush” (Sines 2004)
José Mário Branco – Se do Império
Voz 1, realização, textos, foto: Pedro Lemos
Voz 2: Maria “Cold” Martin
Quando afrontas alguém que “amas”, estás a testar a tua própria ideia de amor, à procura da essência, dos contornos, dos limites. É isso que te importa, não o amor, embora essa tua ideia possa ser tão fluída ou imprecisa quanto o próprio. O amor não se constrói, o que pensas dele sim. Quiçá o contrário: o que pensas do amor não é construção tua, o amor que entretidamente alimentas talvez. A não ser que sejam o mesmo, a ideia e o amor, e este esteja todo e só na tua cabeça (embora mais depressa no teu corpo). E não resulte de factores exógenos tão redundantes como a existência do objecto amado. E dos sinais que emite. Ou da conjugação, in, con, semi consciente, do que a tua cabeça engendrou a propósito da pessoa do outro e do que o outro aparentemente te revela, com a tua ideia de amor, ou com a ideia que tens agora do amor. O que recomenda um sério esforço de simplificação:
«amor amor amor p’ró grelo
amor amor amor p’rá pissa»
Agora já podemos começar a falar da coisa…
… O amor é uma grande foda que se desgasta, desgosta, recalcitra e fode-nos bem. O amor contra o outro, entenda-se, o amor que inflama e arrasa o amor próprio, quando não propriamente o próprio E não o amor místico, que é uma maluqueira como outras, no limite uma obstinação malsã, de que são exemplos o amor parental, o amor à pátria, o amor divino, tudo males que se anunciam por bem – com prognóstico reservado, é certo -, e não bens que vêm por mal, como o verdadeiro amor. O amor-arrebatamento, o que alucina, assombra e captura, causando dormência, dependência, comichão, e o seu alegre espelho convexo, o amor-redenção. Também conhecido por amor-receita, remédio para a iniquidade e o desespero, arquétipo do sentimento de culpa dos sistemas sociais. Princípio activo: tolerância. Amor arrebatador, tolerante e redentor. Amor-comprimido, tolerado, enrabado. Auto-indulgente, onanístico, castrador. Amor que funciona muito bem. Amor que, sendo um conceito político, não existe. Amor que, sendo uma grande foda que se desgasta, deixa-se foder e fode-nos bem…
… Quantas voltas tenho que te dar para que fiques conforme, rabiscava eu, torcendo a ideia de amor até a enxugar por completo, quantas voltas mais aguentas? Mas não podia continuar a escrever, faltava-me convicção. E antes um exercício falhado do que perder a matéria para sempre…
Música:
Serrote
Johann Sebastian Bach – courante da suite V para violoncelo/Paolo Besci (exc.)
Jackie – O Motherfucker – Sun ray harvester (exc.)
Valdo (recluso) – Fome de amor, dito por Mário Viegas
Eric Peters – Electronic rhythm (exc.)
The Cramps – Can your pussy do the dog
Monty Python – Sit on my face
People Like Us – ILY
Domenico Scarlatti – Inflammatus et accentus, do Stabat Mater/Ensemble Vocal e Instrumental de Lausanne, dirigido por Michel Corboz (exc.)
Chuck E. Weiss – Do you know what I Idi Amin (exc.)
Canto de glória iakoute, Rússia (exc.)
Eszter Balint (Serge Gainsbourg) – Un poison violent, c’est ça l’amour
Mler Ife Dada – L’amour va toujours bien, merci.
Citação: Benjamin Péret, Os Tomates Enlatados
Textos, voz, foto, – Pedro Lemos
Outra Voz, – Maria Martin
começou por libertar um dos ofegantes seios da prepotência do vestido, e quando o mostrava dizia: vou-lhe dar um presente
as coisas concisas são coisas concretas trazia muito rouge nos lábios
falava no coiso, o remoinho leva-te para o fundo do rio mas nadar tão depressa fica ao menino como
tentação
ai deixar ai deixar, ser lambido tão de mansinho…
Cobiçar a mulher do próximo é pecado.
Cobiçar a mulher do alheio é pecado.
Não se cobice a mulher. Mesmo que ferva
Não se procure a mulher do próximo mesmo que alheio
Não serve uma mulher a dois homens
Pode servir-se ela de dois ou mais até
Mas como pode servir a dois homens
Quando entre eles se atravessa o ciúme?
Queremos a propriedade do outro
Mesmo quando nem amamos
Quando já nem queremos
É da irracionalidade que se faz o ciúme
A matéria mesma dos sentimentos
Que acusas aos outros: não tens
Som:
The Big Gundown: John Zorn Plays the Music of Ennio Morricone
(Pum ema)Detém-te, olhando à tua volta estrabicamente e repara no que dentro de ti se agita.
São pruridos caí tens, a digestão do teu dia ou uma líbido indó mita?
É a useira impressão? Não cedas!, ultrapassa-a com a firmeza
Que vai comendador dos crentes, ateus e agnósticos
E dos que se cagam para isso
Depois fodes-te
Na mesma
O atum
Não, nessa altura ainda não era um atum. Evitava frequentar cardumes para não ser apanhado na pesca de arrasto e se tal acontecia mostrava-se bastante indignado e voltava a mergulhar. É certo que já não recebia os amigos como dantes e os últimos encontros só ocorriam em alto mar, e que se o tentavam convencer a voltar não fazia mais do que adejar impaciente as escamas. Ou responder, com um cúmplice piscar de olho, “uma ova!”.
Houve dor e alívio quando deixou de dar à costa. Dor da parte do lumbago e alívio da parte intestinal. HaikuCaraças…Já perdi
A conta
Às gajas que não comi
Música:
Erik Satie – Três Gnossienes 1 (Hakon Austbo, Aldo Ciccolini, Grim);
Philip Glass – Satyagraha: King – 1.ª parte (exc.);
Os Poetas/Mário Cesariny – Em Louvor e Simplificação de Àlvaro de Campos;
M. Giacometti/F. Lopes Graça (recolha) – Cantilena da pedra (Serraquinhos, Montalegre);
Blind Willie Johnson – Dark Was the Night Cold Was the Ground;
O que é o que é uma pequena vontade mais que a ausência de qualquer vontade?
Acabaram-se. As oportunidades. Numa altura, as oportunidades não se acabam, recomeçam. Mas recomeçam como se outra coisa. A outra coisa não depende mais do que da vontade.
Ah, pois, a vontade.
O que é uma pequena vontade mais que a vontade que não é grande?
Sinto-me pouco. À vontade. Quantas vezes tive tão pouca como a que não tive quando…
Quando o podia ter feito, o que não fiz. Quando não fiz o que fiz. Sem vontade.
A vontade é a parte seguinte. Têm-se, não, nem por isso
A vontade é a última oportunidade de quem não teve vontade.
O que é uma pequena cabeça a pensar mais do que uma cabeça pequena que não pensa? Coisa grande. Não é uma missão, nem apenas mais um trabalho. Depois destas reformaste-te, não fazes mais nada, e vais à procura do coisa alguma para onde quiseres. Pensa. A desistir desiste já, tens ainda uma noite para ouvires o beijo no carro. Depois sei que desistes. E ficamos a tratar dos pormenores, não vale a pena falarmos agora do que vais desfazer depois, aguenta esta noite, ficas com umas férias. Rebenta, a ideia é essa, rebentares, teoria da motivação do trabalho, capítulo I, os gajos rebentados produzem mais sobretudo se ouvirem as gargalhadas, as gajas então rentabilizam que é um disparate, é pá é assim, temos a vida inteira pela frente, mesmo que já não reste grande coisa. Estamos conversados. Ainda tens uma noite pela tua frente? Não é a ultima noite, nem pensar nisso é bom, ainda nem ouve o beijo, e isto para ti é caca, passas-te na vida a gabar-te. Como os cestos. Só precisas de não te esquecer de nada. Leva as roupas, também não tens muitas, os apetrechos. Leva tudo de casa. Depois decide que não vais ter outra. Casa. Tempo. É um velho filme, um velho personagem. Deixa de fugir à estória. Tinhas 12, 21, 42 anos. 70, 80 1999. Agora tudo fluía e soltava-se ao correr da pena o fim não se faz por este meio. Ter alucinaudições. Estar perdalunidado. O que é o grande mais do que uma coisa apenas maior do que a cousa pequena? Aí está. Foi o princípio de uma breve claridade. A treva vinha, e ia. As televisões quanto tempo duram ligadas? Os fogões começam ganhar ferrugem pelos bicos, ou pelas costas? Gostas de ouvir? Já comeste a música?